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A GUERRA DO TIKTOK

Escrito por Escola Parque | Mar 10, 2022 1:50:33 PM

Artigo por Patrícia Lins e Silva (“A GUERRA DO TIKTOK. As crianças e jovens sabem perfeitamente da guerra. Cabe à escola apoiar os alunos no desenvolvimento de sua capacidade de pensar.")
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Patrícia Lins e Silva, nossa Diretora Pedagógica, aborda o acesso fácil às informações e a capacidade das crianças e jovens de discernir o conteúdo que chega até eles. Como ela diz na abertura do artigo para a revista Veja: “Voltamos para a escola depois dos falsos feriados de Carnaval, festa que não aconteceu para evitar aglomerações por causa da Covid-19. Porém, o século 21 não quer nos deixar dormir sossegados. Quando a pandemia começa a se abrandar, a Rússia invade a Ucrânia, uma guerra se instala e a humanidade se vê diante de mais uma ameaça grave. E retornamos à escola com outra inquietação.”

Ela percebe o atual momento histórico como mais um gatilho para as nossas apreensões, que vêm se acumulando em consequência das tecnologias digitais, que nos trazem informação sobre tudo: a revolução biotecnológica, a revolução quântica, a inteligência artificial, o aquecimento global, a degradação ambiental e a Pandemia de Covid-19. Para ela, a Pandemia da Covid-19 apenas nos mostrou que pode haver outras. E também ressalta uma apreensão mais recente: as ameaças de uma guerra nuclear. Patrícia comenta, preocupada: “Acreditamos que esses são motivos principais de nosso desassossego, mas não os esgotam. Aceitamos contribuições.” E se pergunta: “Como a escola vai receber as crianças e jovens hoje?”

Para ela, a tendência é não falar da guerra. Ela acredita que as escolas, na ilusão de que as crianças não pensam nisso, vão seguir ignorando o tema. Mas, para ela, essas crianças “sabem perfeitamente da guerra, que é transmitida em tempo real nas telinhas dos smartphones. Só faz sentido pensar em matérias, currículos e conteúdos se for para relacionar com a realidade que estão vivendo. É fundamental deixá-los pensar, refletir, trocar ideias, tentar pensar como o outro, como quem pensa diferente.”

Patrícia afirma que o assunto é importante “porque os alunos vivem no cenário TikTok, uma plataforma digital que tem de tudo e para onde contribuem com seus vídeos.” Ela relembra uma imagem marcante do começo da invasão: “É uma imagem do TikTok, mostrando mísseis caindo sobre a cidade de Kyev como se fossem fogos de artifício.” Chamou a atenção de Patrícia o fato de que o vídeo seja embalado pelo som de uma música da banda indie-pop MGMT, que todos os jovens conhecem, cuja letra se tornou uma espécie de meme no TikTok e que diz em sua letra: “Saiba que, se você esconde, não desaparece.”

Patrícia reforça que esse vídeo segue as normas estéticas da plataforma: é agitado, fora de contexto, com uma música bastante significativa ao fundo. Ela conta que algumas publicações já se referem à “primeira guerra do TikTok”, e que isso está transportando, para uma nova plataforma, as mesmas fórmulas exploradas nas mídias tradicionais, só que agora com um potencial de abrangência ainda maior. Ela relata: “Nos vídeos TikTok, como um que mostra um soldado ucraniano uniformizado fazendo a caminhada “moonwalking” de Michael Jackson, em um campo vazio. Ganhou mais de doze milhões de curtidas e centenas de milhares de comentários.”

Patrícia comenta outros vídeos que seguem um modelo bastante popular no TikTok. Como o do ucraniano apontando coisas que chama de seu “abrigo de bombas” ou um “café da manhã militar ucraniano” com bananas e iogurte. E ainda lembra um que se intitula “dia típico durante a guerra na Ucrânia” e termina com um clipe de imagens de um cinema destruído por um bombardeio. Ela conta, ainda, que um podcast disse que a invasão da Ucrânia é “a maior guerra on-line de todos os tempos até a próxima”. Ela avisa que são “piadas, muitas gracinhas e, ao mesmo tempo, documentos dramaticamente sérios.” E nos lembra que esses vídeos de guerra falam aos usuários do Tiktok – que são os nossos alunos – em sua própria língua e no ambiente que conhecem bem. E que, neles, os ucranianos não são retratados como vítimas distantes, mas como coleguinhas virtuais que têm as mesmas referências, ouvem as mesmas músicas e usam as mesmas redes sociais. Ela alerta que os conteúdos desses clipes, assim como os espaços digitais em que são consumidos, criam uma sensação de intimidade, muito diferente das antigas fotografias. Assim, para Patrícia, “a guerra virou conteúdo, fluindo em todas as plataformas ao mesmo tempo. Imagens se tornam virais, ganham milhões de visualizações no YouTube, Tiktok e nos sites de várias publicações de notícias.”

Patrícia recorda que a Guerra do Vietnã foi a primeira a ser televisionada e que mereceu até a crítica da escritora e filósofa Susan Sontag que afirmou, em seu livro “Olhando a dor dos outros”, que a carnificina nas zonas de conflito se tornou “um ingrediente rotineiro no fluxo incessante de entretenimento doméstico na tela pequena.”

Patrícia Lins reflete que, agora, a tal tela pequena são os nossos smartphones. Segundo ela, “a filmagem acontece o dia todo, ao lado de debates sobre a final de série de TV, fotos de bichos fofos e atualizações sobre outros desastres contemporâneos.” Ela alerta que que as várias formas de conteúdos se sobrepõem, sem hierarquia, sendo alimentadas pelo algoritmo do Tiktok, o que torna bem mais fácil consumir, passivamente, um vídeo e passar para o próximo, sem questionar o conteúdo. E nos lembra que um usuário pode assistir a um filme sobre a fome, seguido de filmes sobre crimes de guerra e, logo em seguida, um anúncio de hidratante, todos no mesmo formato de 30 segundos. Como diferenciar os conteúdos?

Observe esse relato de Patrícia: “Existe um gato famoso na Internet, chamado Stepan, que tem uma conta no Instagram. Acumulou um milhão de seguidores. Seu dono vive na Ucrânia e, recentemente, deixou de compartilhar retratos de animais fofos para postar fotos de um ataque de mísseis em Kharkiv.” Para Patrícia, essa é uma evidência da guerra que pode fazer com que o espectador da internet se lembre de que está assistindo a pessoas reais em perigo real.

Ela cita, novamente, Susan Sontag que afirmou que a mídia social é efêmera por design, mas que o consumidor pode ter uma experiência imediata e imersiva de uma situação que está acontecendo naquele momento. Para Patrícia Lins, imagens, como a da mulher que dá à luz no abrigo de uma estação de metrô, em Kyev, a de famílias que se amontoam com seus gatos e cachorros, a de um pai ucraniano que diz um adeus choroso à família, são situações que “evocam no espectador pensamentos sobre como reagir em circunstâncias tão difíceis, com apenas uma câmera de telefone.” Ela lembra que o próprio presidente ucraniano, Zelensky, faz uso dessa sensação de proximidade da mídia social, enviando seus vídeos selfies gravados na rua. Segundo Patrícia, ele usa o formato para mostrar que continua no país, lançando-se como Davi contra Golias.

E ela faz outras observações: “As atualizações de uma guerra com pedaços de mídia digital a tornam ainda mais caótica. É trabalhoso determinar se uma postagem é “verdadeira” e não de alguma “página de guerra” que tenta acumular seguidores.” E cita um videoclipe que rodou o mundo, na semana passada, com o título de “O fantasma de Kyev” que, na verdade, era um videogame chamado D.C.S. Mundo. Ela comenta que “mesmo o vídeo sabidamente falso, as pessoas o compartilharam, como fizeram com outros tantos, como aquele mostrando descida de paraquedistas russos em 2016, a queda de um raio em uma usina como se fosse um ataque militar.” Patrícia lembra que o conteúdo na internet segue leis de movimento. Assim, tanto faz mostrar a invasão de um país ou um gato subindo numa árvore. “Alguma coisa seduz e torna-o popular”, diz ela, “independentemente da sua proveniência ou qualidade.”

Para Patrícia, o objetivo das imagens é ser testemunha, e é o espectador quem deve interpretar o que vê. Assim, segundo ela, “uma atrocidade pode dar origem a respostas opostas, como um clamor por paz ou por vingança, ou simplesmente confundir ainda mais as mentes, incessantemente, abastecidas por imagens terríveis do que acontece.” Ela relembra que as fotos da linha de frente de batalhas são “um símbolo visual do custo humano de uma guerra desnecessária e imagens potentes o suficiente para se alojar em nossas mentes e mais ainda na mente de crianças e jovens.”

Por isso, Patrícia Lins entende que os vídeos do Tiktok podem embaralhar nossa compreensão. E que a exposição excessiva à violência pode acabar banalizando o mal e tornando mais frágil o sentimento de solidariedade por quem sofre. Aqui, diz nossa Diretora Pedagógica, entra a escola com sua função mais importante que é a de apoiar os alunos no desenvolvimento de sua capacidade de pensar. Saber pensar é mais importante do que acumular conteúdos descontextualizados. O conteúdo é o que acontece no mundo, é tudo a que se assiste, se lê, se escuta”.

Finalizando, Patrícia Lins propõe: “Vamos propor aos alunos uma conversa sobre o que assistiram no TikTok, o que pensam sobre as mídias que usam, como as usam, orientando-os para uma reflexão sobre a realidade à volta para que aprendam a criticar e discutir, com seriedade e profundidade, os fatos e acontecimentos da vida.” Enfim, para que desenvolvam a sua capacidade de pensar.